Parece que já o conhecia há anos antes mesmo de saber seu nome, e me parecia tão real hoje, que bebia comigo, farreava comigo, cantava comigo, brigava comigo, corria comigo contra o tempo da cidade que já se preparava para fechar. Não por ter sido que ele era de verdade, mas muito mais pelo que ele era para mim, quase como um sonho, quase como se eu tivesse me instalado num sonho e de lá mesmo realizasse tudo que sempre me peguei, dormindo ou acordado, sonhando em realizar na vida real. Ali naquele momento, conversando com ele e compartilhando uma “palfísico”, satisfeito estava, e fui atravessado pela lembrança das quantas vezes me peguei pensando em Dean Moriarty! Dean Moriarty! Dean Moriarty.

Não por ter sido de fato Neal Cassady, e ter morrido anos antes d’eu nascer, mas ali estava ele, na sua transfiguração para quem ele era realmente para mim, Dean Moriarty, insolitamente tomando uma cerveja local, como se de lá nunca tivesse saído, e de fato não saiu, seu corpo estava enterrado ali, em San Miguel de Allende, desde a desencarnação, e não sei quantos de “mim” passaram por ali impedindo-o de levar o sono eterno adiante e, como Jim Morrison em Paris, fadado a viver a vida que levou sua vida over and over and over again, sem parar.

Para mim era tudo novo e uma transcedencia da minha própria história, de tudo que vim vivendo com Moriarty e Paradise na cabeça, tanto quanto Alex Supertramp, tanto quanto Bandini, e estar à frente dele, de carne e osso, de sonho e realização, de insanidade ou ‘a little high”, de igual para igual acabando com a cerveja de um bar enquanto um grupo de Mariachis incansáveis em troca de unos pesos não paravam de cantar El Rey seguidamente, intercalados com outras canciones de borrachera que outros ainda pediam e pagavam mais que nós, antes que tudo fechasse para a noite seguir como as noites são no meio do deserto, promessas de um mundo calmo e silencioso que só nós errantes e pedotes ainda insistiam em tardar acontecer.

Em San Miguel de Allende, esquece o jazz, the beat, the beats, the dharma, the bums, esquece tudo, ali era la peda, los tacos, culeras, cantinas y mariachis, pues nada más... E até apagarem as ultimas luzes e trancarem a ultima porta, nós não paramos um segundo. Depois, pegamos umas extras para sair andando pelo breu, tropeçando em nossas próprias pernas e nos escorando um no outro.

No caminho dos trilhos de trem, bem no meio do caminho, indo para qualquer lugar, para nenhum lugar, Moriarty parado, em pé, como se nada tivesse consumido aquela noite me olha, vago e triste, não iluminado, “cara, po, se liga, daqui não posso passar”, olhei-o, olhei em volta, muito pouco vendo na pouca luz da lua, “foi aqui?”, ele afirmou com a cabeça e os olhos marejados. Nos olhamos em silencio por algum tempo, “sinto falta dele”, disse, “não tem minuto que passe, que eu não pense em Sal Paradise! Sal Paradise! Sal Paradise!”. Olhei em volta e toda uma vida passou diante de mim, tantas páginas onde seus nomes aparecem repetidamente, quando voltei a olhá-lo já não estava mais lá, como apareceu se foi, e eu pude voltar para onde dormiam meus amigos – mexicanos esses, para continuar a viagem até Parras de La Fuente, nosso destino quase certo.

 

San Miguel de Allende é a cidade mexicana onde Neal Cassady morreu e está enterrado. Visitei a cidade por duas vezes e por duas vezes me senti tocado pela minha história de vida, como um beat tardio, viajando o mundo em busca de algo que não se encontra de forma alguma fora de nós mesmos.

San Miguel tem um centro da cidade colonial, que mantem a arquitetura mistura de europeia e nativa, com um charme de cidade antiga que apesar da modernização, ainda tem Mariachis nas praças tocando e cantando canções tradicionais, sejam de borracheiras para os beberrões, sejam para namorados e namoradas cantarem canções apaixonadas dedicadas um ou outro.

Mariachis como os do Tenampa não existem.

Chegar desavisado ao Tenampa, com seus mais de cem anos de tradição, no centro do México, na praça Garibaldi, é correr o risco de querer virar mexicano no fim da primeira canção que os mariachis cantam, vestidos à caráter, enquanto se toma unas banderitas, drink especial com três copos de dose, uma de limão, uma de tequila blanca, e outra de suco de tomate, formando as cores da bandeira mexicana, que depois da terceira, já não hão pernas que sustentem o corpo. E virar mexicano não é fácil, demanda força pra comer pimenta, para beber cerveja e tequila a medida que chegam na mesa, comer com tortilha no lugar dos talheres e chorar alto por todos os amores do passado na frente de quem quer que seja, dar gritos e cantar alto até que a voz se acabe, abraçado ao primeiro fodido, tão fodido quanto você, ao lado, que também está chorando por um tanto de amores que, não fosse sua companhia também mexicana, poderia ficar constrangida, mas essa também está chorando pelos seus próprios amores que deram errado, e independente das razões do fim, os fizeram muito mal a ponto de sofrer de forma que só canções de borrachera para exorcizar esse mal.


 

 It's all over now, baby blue!

 

Palfísico” é o nome popular e de zoeira de uma cerveja mexicana que se chama Pacífico. Uma das melhores cervejas de botequim que tem no México, encorpada e saborosa, de coloração amarelo claro e amargor controlado. Tomava muito quando morava lá.

Os mexicanos gostam de dar apelidos para as cervejas, como essa se chama Pacífico, e é cerveja de bebum sem dinheiro, eles chamam de “palfísico”, ou seja, “para o físico”, já que é cerveja de tomar quantidades grandes em churrascos e festas. Além dessa, a Modelo Especial, que tem uma garrafa rechonchuda, é chamada de “cojones de búfalo” ou só “cojones” (culhões).

Dentre as cervejas que tomei no país, a Tecate Light, Victoria, Corona e Coronita, Dos Equis (XX), as duas já mencionadas e uma chamada Índio são as que mais gostei, mas essa ultima em especial me marcou muito porque era a cerveja vendida na Lucha Libre da Arena Olímpico de Gomez Palacio, no estado norteño de Durango. A lucha libre diz mais a respeito da cultura mexicana do que qualquer coisa que se possa imaginar.

Um estádio, ou arena, decadente, num bairro decadente de uma cidade decadente do interior decadente do México. Uma luta armada quase circense para entretenimento e extravaso, de gente de todo tipo e idade, por uma merreca, num evento que eles levam a sério. Os lutadores, com suas mascaras e fantasias, me lembro de dois especificamente, Dulce Paola e Sexy Pisces, que quebram o estereotipo do lutador machão fortão, com golpes especiais que vão de beijo na boca do adversário à reboladas atordoadoras, fazem a parte da ação que todos vão ver, mas os destaques de verdade são coisas subjetivas: o arbitro da lucha, Viruta, e a interação da plateia, e o atendente, Barra Marín.

Viruta, o árbitro, apanha mais que os lutadores... dos lutadores, dos espectadores, da própria mãe que aparece nas luchas de vez em quando, é xingado, vira alvo de copos de cervejas, atirados por idosas matriarcas de família que ainda estão com as roupas de missa e terços no pescoço, tomando cerveja e xingando tudo quanto é palavrão que não escute Nossa Senhora de Guadalupe, ou aprendida com ela, que algum dia deve ter xingado algum arbitro de lucha libre lá atrás nos primórdios do cristianismo mexicano no sopé do Tepeyac, que depois de chingar grita lá pra baixo “oye Barra (Marín) dos Índio por favor”.

 

Eu já havia passado por mais de quinze cidades na Europa, muitas das quais não tinha lugar para dormir, quando cheguei ao aeroporto de Girona, uma cidade próxima à Barcelona, na Catalunha, em que o aeroporto é utilizado para voos domésticos, como um Santos Dummont no Rio de Janeiro, desafogando o aeroporto internacional. Estava lá para pegar um trem para Paris na estação próxima, no dia seguinte, e pretendia, para evitar custo de estadia, dormir por ali mesmo.

Cheguei em torno das onze da noite, me encontrei um canto e dormi. No meio da madrugada fui acordado a chutes e xingamentos, assustado, pensando que seria preso e deportado. Mas na verdade, era meu Rum, que estava chegando do País Basco, para também ir à Paris, só que de avião. Dividimos um pão e uma lata de atum, e fomos dormir. Pela manhã, se preparando para seu voo, Rum me disse que tinha arrumado um lugar para dormirmos nos arredores de Paris, na casa de uma colega de classe de onde estudava em Burgos. Perfeito.

Partiu para seu voo, dei um tempo fui à estação de trem. As dez da manhã já estava no trem a caminho da fronteira entre Espanha e França. Cheguei a uma cidade que devia ter uns quarenta moradores, desci na estação que não passava de um ponto de trem coberto no meio do nada. Peguei o próximo que passou, apenas para passar pro lado francês da fronteira. Outra cidade minúscula igual à anterior. Desci, peguei mais dois trens até chegar em Paris, lá pelas cinco da tarde, me encaminhei para o início da avenida Champs Elisées, onde me encontrei com o Rum.

Essa viagem seria sua última aventura, de Paris iria para Bélgica e depois voltaria para sua casa em Parras de La Fuente, cidade interiorana no deserto do norte mexicano, para uma vida padrão, e por isso, passamos os próximos quatro dias a toda madre.

Dizem, os espíritas, que a relação dos vivos com os que morrem, pode prendê-los aqui, ou impedi-los de se desenvolver no mundo espiritual, e assim como muitos dos beats da década de quarenta, o mesmo pode ser que tenha ocorrido com Jim Morrison, poeta e cantor da banda The Doors, que morreu em Paris e está enterrado no Cemitério do Père Lachaise na capital francesa. Ali, em seu túmulo, como tantos outros, diariamente, sem respeito aos outros, fomos beber juntos com meu ídolo durante a madrugada. Pensa numa festa num lugar inapropriado... chegamos lá com umas cervejas e já tinha uma pá de gente bebendo e se drogando junto do Jim Morrison, que provavelmente não consegue se livrar desse mundo por conta desse pessoal. Não sabia disso na época, só queria ter a oportunidade de compartilhar uma bebedeira com ele, e lá ficamos até acabar nossa cerveja.

Os quatro dias passaram rápido, mas foram bons e intensos, e apesar de tê-lo encontrado algumas vezes depois na sua cidade natal, ali na estação de trem aonde ele iria para Bélgica, nos despedimos aos prantos de quem nunca mais se veria.

Pensei que sorte eu tinha por fazer amigos assim, mas...

 

No México os grupos de Mariachis cantam canções tradicionais, principalmente as de borracheira, em troca de dinheiro, à escolha do pagante. Quando eu morei lá, a canção que mais escutei, e que me emocionava, e que virou uma tatuagem no meu corpo, se chamava El Rey, composta por José Alfredo Jiménez, em 1971 e que foi, devido a sua temática, rapidamente incorporada ao imaginário popular mexicano.

Eu me encantei na primeira vez que ouvi, e em pouquíssimo tempo morando lá já estava enturmado em todo o ritual em volta da música.

Quando chegamos à Parras de La Fuente, encontramos um amigo natural da cidade que havia morado no nosso apartamento quando estávamos todos (eu e mais cinco mexicanos) morando em Burgos, cidade histórica de Castilla Y León, na Espanha. Em Burgos éramos apenas um monte de jovens beberrões e estrangeiros numa terra desconhecida, mas em Parras de La Fuente, o Rum, que havia passado quatro dias peregrinando pelas ruas de Paris comigo, era como um rei, nascido e crescido numa cidade tão pequena que ele conhecia literalmente a todos e vivia uma vida sem preocupações.

Chegamos na casa de sua família e antes mesmo de vê-lo já escutávamos sua voz “QUE PASSA TIO? AAAAAAAIIIIIGGGHHH” com uma voz de baixo e aguardentosa característica sua, saudando-nos com a emoção de irmãos que se reencontram depois da guerra. Abraços e sacanagens se seguiram após o primeiro contato e fomos a rodar pela cidade, na fome, Rum nos colocou na caçamba da picape dele e nos levou numa barraca de rua para comermos um Pollo Rojo (na época ainda não era vegetariano).

Pollo Rojo, um galeto, marinado por 24h num molho de ervas aromáticas e temperos colorantes naturais, uns cinco tipos diferentes de pimentas (lembrem-se que estava no México, em que para não consumir pimenta tem que pedir pra tirar, mesmo que peça comida que não seja picante, o nível do que é picante para eles é outro, não à toa o lema culinário é “o que pica pra entrar repica pra sair”), assado com pele numa churrasqueira vertical até ficar sequinho por fora e suculento por dentro, acompanhado de jalapeños inteiros assados. Que desjejum!

Depois de comer, fomos para o deserto no entorno da cidade, Parras é o estereótipo da cidade mexicana de filmes de Hollywood, onde você para, olha em volta e só vê buracos de cascavel e aqueles rolos de feno rodando na areia. Sentamos e nos embebedamos como loucos de uns “culhões de búfalo” e partimos pro rally parrense, os bebuns vão na caçamba da picape, enquanto outro pilota o carro em alta velocidade pelas dunas e ganha quem for o último a cair do carro. Obviamente, fui o primeiro a cair, no primeiro tranco, da primeira duna. Mas me louvei como herói!

À noite, a família do Rum toda se reunião na cantina da família, para beber e comer, comemorando minha visita a eles. Veio até uma prima que era a pérola da família e estavam fazendo votos pra gente se ajeitar e se casar, tudo em segredo sem que eu ou ela soubéssemos. Lá pelas tantas, chegou um trio norteño, para tocar canciones de borrachera y mariachi, e animar um pouco a celebração. Não demorou muito até a vovozinha mexicana, matriarca da família com seus quase cem anos de idade, que não parou um segundo sequer de beber cerveja, começasse a gritar e xingar o marido morto “te ódio culeroooo” com uma gama de palavrões que nem mesmo eu nos círculos mais baixos que frequentava conhecia.

El Rey, a canção que não pode faltar. A família me colocou ao lado do trio, com Rum e meus outros dois amigos, para cantar, para me mostrar para a tal prima, e todos já bem pedos, começamos a cantar a todo pulmão, sem pudor das péssimas vozes e das línguas enroladas, “Yo sé bien que estoy afuera / Pero el día que yo me muera / Sé que tendrás que llorar (llorar y llorar) / Dirás que no me quisiste / Pero vas a estar muy triste / Y así te vas a quedar / Con dinero y sin dinero / Yo hago siempre lo que quiero / Y mi palabra es la ley / No tengo trono ni reina / Ni nadie que me compreenda / Pero sigo siendo el rey / Una piedra en el caminho / Me enseñó que mi destino / Era rodar y rodar (rodar y rodar) / También me dijo un arriero / Que no hay que llegar primero / Pero hay que saber llegar / Con dinero y sin dinero / Yo hago siempre lo que quiero / Y mi palabra es la ley / No tengo trono ni reina / Ni nadie que me compreenda / Pero sigo siendo el rey”.

Depois as musicas ficaram mais animadas e começamos a dançar, a prima e eu, mas o dever nos chamava, e Rum nos colocou os três e o trio norteño na picape e fomos, no meio da madrugada, tipo umas duas, fazer uma serenata para uma paixão que ele tinha. O trio tocava, Rum cantava com a voz de baixo, contratenor que tinha, e nós fazendo vocais de apoio mais agudos, por umas cinco ou seis músicas, acordando toda a vizinhança, inclusive o pai da moça que saiu da casa com uma espingarda, dando tiro pra cima e nos fazendo correr como velocistas em olimpíadas. Fui ser achado pelo Rum meia hora depois, perdido no meio da cidade, e fomos procurar o sanfoneiro do trio. Ano passado nasceu a terceira filha deles.

 

Chegamos no Sana a pé, desde Casemiro de Abreu, por falta de kombi pra levar naquele dia. A subida é cansativa e por sorte, talvez não, porque sempre, viajávamos leve, pouca roupa e pouca coisa, para garantir todas as possibilidades de movimentação, aonde quer que fosse.

O Sana é o paraíso dos neo hippies da minha geração, uns atrasados que nasceram depois do Woodstock e sonham ter estado lá, que vão pra lá curtir a natureza e ficar mais perto do seu respectivo divino particular, sob a vigia do Pombo que estufa o peito para proteger o lugar.

Já estávamos cansados das badalações e festanças dos últimos meses e queríamos chegar no céu, longe da urbe que resseca e corrói os princípios mais humanistas das pessoas, armadilhados pelo capital precisando comprar e comprar e comprar, e para isso trabalhar e ser explorado, e trabalhar e ser explorado, e ser explorado e trabalhar, e sorrir por tudo isso, tendo como pagamento umas pílulas prescritas contra o estresse, e uma vez no céu, queríamos nos tardar lá e ver se poderíamos sei lá fazer parte de algo maior que não tivesse o dinheiro como deus.

O Sana é pequeno e fácil de se encontrar, e não muito depois que passamos pelo portal de entrada da cidade já estávamos montando a barraca no camping onde encontramos vaga, e por ter sido tão bacana, onde ficamos todas as vezes que voltamos por lá. Viajávamos muito há muito tempo, juntos – dessa vez desfalcados de um, e por isso era tranquilo dividir a barraca, podendo com isso garantir que estivéssemos ainda mais leves. Barraca para quatro pessoas cabem dois.

Com a “casa” montada, partimos pra cachoeira do escorrega, limo na pedra faz o desavisado escorregar e se estabacar, uma das sete cachoeiras mais acessíveis do Sana, e lá ficamos um bom tempo, deixando aquela água doce e gélida lavar o corpo, a alma, a consciência, em meio a algumas famílias locais, turistas, uns hippies velhos que mais tarde descobrimos estão sempre por lá nus, uns artistas da região, e a fauna e flora local que abençoam os respeitadores do ambiente (uma vez dormi numa pedra e acordei com uma cobra dormindo ao meu lado embaixo do sol quente do meio dia, que quando acordei e me mexi, me olhou, a cobra, esticou o corpo e saiu se arrastando na pedra até pra dentro do mato, como quem tivesse me agradecido pelo calor corporal compartilhado).

Como bom aventureiros, exploramos todas as cachoeiras durante aquela tarde, pra voltar pro camping no início da noite e descansar umas horinhas antes de ir pro centrinho da cidade ver um show do Baia, artista que escutávamos juntos. Descansar em camping é igual a ficar sentado num sofá de madeira com umas cinco pessoas que você não conhece dividindo whatever estava sendo consumido, de chá à qualquer entorpecente natural, e assim conhecendo muita gente nova, na maioria das vezes pertencente ao mesmo grupo de interesses que você mesmo, criando uma conexão e uma sensação de pertencimento.

Uma vez que o grupo já se familiarizou, parte geral pro show, que agrega todas as pessoas que estão presentes na cidade naquele momento, e depois do show, o estica é sempre maneiro com todo mundo cantando as músicas em voz alta pelas ruas até chegar no camping. Fizemos isso, assim como todos as dezenas de outros grupos no caminho, muitas vezes conciliando as musicas cantadas, aumentando os coros e nos divertindo geral como se o mundo fora daquele encantado não estivesse o caos que sempre foi, como se por algum milagre divino naquele pedaço de terra, o céu, teto de nossa casa, possuísse estrelas vivas e não passasse sinal de aparelho algum de telecomunicação que controle as mentes e vidas de quem fica no caminho das ondas.

A madrugada apenas começara, os que no camping estavam vivendo por aquele período se agregaram em volta de um espacinho de terra queimada, nuns banquinhos feitos de pedaços de tronco de arvores, batendo papo e bebendo e rindo e contando suas próprias histórias de vida uns pros aleatoriamente, com o amor nascendo lépido e fagueiro num casal ou outro. Juntamos umas lenhas, uns carvões que sobraram de um churrasco que alguém havia feito uns dias antes, um pouco de jornal velho e o final de uma garrafa de tiquira que eu tinha na mochila, e acendemos uma fogueira no meio de todos nós, umas vinte cabeças, iluminadas em sua vagabundagem, hipnotizados pelas cores vivas e quentes diante de todos nós.

Os sorrisos foram sendo assimilados e ficando mais introspectivos a medida que a madrugada avançava, cabeças deitaram em ombros próximos, mãos se juntaram entrededos, panos foram sendo compartilhados em duplas, as vezes trios, e a fogueira se encaminhando pro céu atordoou a todos num momento de encantamento, folclórico, em que Pachamama, Gaia ou como quer que você chame a personificação que você dá pra força da natureza, se apresentou diante de todos nós, abraçando o céu que olhávamos todos ao mesmo tempo boquiabertos e extasiados como num momento de iluminação e descoberta dos segredos mais primitivos do mundo, que jamais passaríamos de novo, compartilhando um momento único que nos uniria para sempre, mesmo que só por um instante.

Tuc tá tuc tá tá tuc tá tuc tuc tá começou a soar com algumas mãos batendo nos tocos de arvore embaixo de nós, acompanhando os sons de grilos e luzes de vagalumes e gritos de macacos da noite atlântica que logo se transformou numa catarse musical coletiva sem precedentes, que até hoje é contada pela região, em que ao primeiros passos de descontrole corporal entregues ao momento, quem não batucava cantava e dançava com os ombros e batia palmas e gritava ou levantava e deixava o corpo se mexer no ritmo daquele mundo gigante que se desenrolava em volta da fogueira, como nativos faziam antes da chegada dos brancos nessa terra quinhentos anos antes, tomados pela energia dos outros corpos próximos, num ritual de beleza e elevação espiritual que tinham nas carnes apenas veículos nesse mundo material que vivemos, e as roupas foram ficando pesadas e inconformes ao que estávamos vivenciando e começaram a ser jogadas pra fora do circulo que fizemos e os batuques e as danças cada vez mais frenéticos denunciando um estado de comunhão de todos com aquele momento inédito e irrepetível, pelo menos para os que ali estavam. Os corpos nus já se moviam quase coreografados naquele frenesi natural que passavam todos e o fogo que já fazia parte do céu e do mato e da terra e dos corpos clareava tudo permitindo que lá de cima quem estivesse olhando a terra naquele momento pudesse ver a natureza em sua maior felicidade noite adentro sem limites e sem humanidade.

O dia clareou e todos os corpos estavam ainda nus conectados em volta da fogueira com suas energias exauridas, voltando aos poucos, cada um com seu invólucro de espírito, ficando de pé, com lágrimas nos olhos, preparando-se para um banho de rio todo mundo junto, em silencio e calma, para começar o dia que se anunciava nos primeiros raios de sol da manhã, ultimo dia de estadia de muitos, inclusive nós, que já partíamos para a próxima parada.

A morena, que segurava minha mão enquanto dançávamos, me abraçou, me beijou, e, enquanto eu lacrimejava, saiu andando, olhou pra trás e sorriu...

  Parece que já o conhecia há anos antes mesmo de saber seu nome, e me parecia tão real hoje, que bebia comigo, farreava comigo, cantava com...