Chegamos no Sana a pé, desde
Casemiro de Abreu, por falta de kombi pra levar naquele dia. A subida é
cansativa e por sorte, talvez não, porque sempre, viajávamos leve, pouca roupa
e pouca coisa, para garantir todas as possibilidades de movimentação, aonde
quer que fosse.
O Sana é o paraíso dos neo hippies
da minha geração, uns atrasados que nasceram depois do Woodstock e sonham ter
estado lá, que vão pra lá curtir a natureza e ficar mais perto do seu
respectivo divino particular, sob a vigia do Pombo que estufa o peito para
proteger o lugar.
Já estávamos cansados das
badalações e festanças dos últimos meses e queríamos chegar no céu, longe da urbe
que resseca e corrói os princípios mais humanistas das pessoas, armadilhados
pelo capital precisando comprar e comprar e comprar, e para isso trabalhar e
ser explorado, e trabalhar e ser explorado, e ser explorado e trabalhar, e
sorrir por tudo isso, tendo como pagamento umas pílulas prescritas contra o
estresse, e uma vez no céu, queríamos nos tardar lá e ver se poderíamos sei lá
fazer parte de algo maior que não tivesse o dinheiro como deus.
O Sana é pequeno e fácil de se
encontrar, e não muito depois que passamos pelo portal de entrada da cidade já
estávamos montando a barraca no camping onde encontramos vaga, e por ter sido
tão bacana, onde ficamos todas as vezes que voltamos por lá. Viajávamos muito
há muito tempo, juntos – dessa vez desfalcados de um, e por isso era tranquilo
dividir a barraca, podendo com isso garantir que estivéssemos ainda mais leves.
Barraca para quatro pessoas cabem dois.
Com a “casa” montada, partimos
pra cachoeira do escorrega, limo na pedra faz o desavisado escorregar e se
estabacar, uma das sete cachoeiras mais acessíveis do Sana, e lá ficamos um bom
tempo, deixando aquela água doce e gélida lavar o corpo, a alma, a consciência,
em meio a algumas famílias locais, turistas, uns hippies velhos que mais tarde
descobrimos estão sempre por lá nus, uns artistas da região, e a fauna e flora
local que abençoam os respeitadores do ambiente (uma vez dormi numa pedra e
acordei com uma cobra dormindo ao meu lado embaixo do sol quente do meio dia,
que quando acordei e me mexi, me olhou, a cobra, esticou o corpo e saiu se
arrastando na pedra até pra dentro do mato, como quem tivesse me agradecido
pelo calor corporal compartilhado).
Como bom aventureiros,
exploramos todas as cachoeiras durante aquela tarde, pra voltar pro camping no início
da noite e descansar umas horinhas antes de ir pro centrinho da cidade ver um
show do Baia, artista que escutávamos juntos. Descansar em camping é igual a
ficar sentado num sofá de madeira com umas cinco pessoas que você não conhece
dividindo whatever estava sendo consumido, de chá à qualquer entorpecente natural,
e assim conhecendo muita gente nova, na maioria das vezes pertencente ao mesmo
grupo de interesses que você mesmo, criando uma conexão e uma sensação de
pertencimento.
Uma vez que o grupo já se
familiarizou, parte geral pro show, que agrega todas as pessoas que estão
presentes na cidade naquele momento, e depois do show, o estica é sempre
maneiro com todo mundo cantando as músicas em voz alta pelas ruas até chegar no
camping. Fizemos isso, assim como todos as dezenas de outros grupos no caminho,
muitas vezes conciliando as musicas cantadas, aumentando os coros e nos
divertindo geral como se o mundo fora daquele encantado não estivesse o caos
que sempre foi, como se por algum milagre divino naquele pedaço de terra, o céu,
teto de nossa casa, possuísse estrelas vivas e não passasse sinal de aparelho
algum de telecomunicação que controle as mentes e vidas de quem fica no caminho
das ondas.
A madrugada apenas começara, os
que no camping estavam vivendo por aquele período se agregaram em volta de um espacinho
de terra queimada, nuns banquinhos feitos de pedaços de tronco de arvores,
batendo papo e bebendo e rindo e contando suas próprias histórias de vida uns
pros aleatoriamente, com o amor nascendo lépido e fagueiro num casal ou outro.
Juntamos umas lenhas, uns carvões que sobraram de um churrasco que alguém havia
feito uns dias antes, um pouco de jornal velho e o final de uma garrafa de tiquira
que eu tinha na mochila, e acendemos uma fogueira no meio de todos nós, umas vinte
cabeças, iluminadas em sua vagabundagem, hipnotizados pelas cores vivas e
quentes diante de todos nós.
Os sorrisos foram sendo
assimilados e ficando mais introspectivos a medida que a madrugada avançava,
cabeças deitaram em ombros próximos, mãos se juntaram entrededos, panos foram
sendo compartilhados em duplas, as vezes trios, e a fogueira se encaminhando
pro céu atordoou a todos num momento de encantamento, folclórico, em que Pachamama,
Gaia ou como quer que você chame a personificação que você dá pra força da
natureza, se apresentou diante de todos nós, abraçando o céu que olhávamos
todos ao mesmo tempo boquiabertos e extasiados como num momento de iluminação e
descoberta dos segredos mais primitivos do mundo, que jamais passaríamos de
novo, compartilhando um momento único que nos uniria para sempre, mesmo que só
por um instante.
Tuc tá tuc tá tá tuc tá tuc tuc
tá começou a soar com algumas mãos batendo nos tocos de arvore embaixo de nós,
acompanhando os sons de grilos e luzes de vagalumes e gritos de macacos da
noite atlântica que logo se transformou numa catarse musical coletiva sem
precedentes, que até hoje é contada pela região, em que ao primeiros passos de
descontrole corporal entregues ao momento, quem não batucava cantava e dançava
com os ombros e batia palmas e gritava ou levantava e deixava o corpo se mexer
no ritmo daquele mundo gigante que se desenrolava em volta da fogueira, como
nativos faziam antes da chegada dos brancos nessa terra quinhentos anos antes,
tomados pela energia dos outros corpos próximos, num ritual de beleza e
elevação espiritual que tinham nas carnes apenas veículos nesse mundo material
que vivemos, e as roupas foram ficando pesadas e inconformes ao que estávamos
vivenciando e começaram a ser jogadas pra fora do circulo que fizemos e os batuques
e as danças cada vez mais frenéticos denunciando um estado de comunhão de todos
com aquele momento inédito e irrepetível, pelo menos para os que ali estavam.
Os corpos nus já se moviam quase coreografados naquele frenesi natural que
passavam todos e o fogo que já fazia parte do céu e do mato e da terra e dos
corpos clareava tudo permitindo que lá de cima quem estivesse olhando a terra
naquele momento pudesse ver a natureza em sua maior felicidade noite adentro
sem limites e sem humanidade.
O dia clareou e todos os corpos
estavam ainda nus conectados em volta da fogueira com suas energias exauridas,
voltando aos poucos, cada um com seu invólucro de espírito, ficando de pé, com
lágrimas nos olhos, preparando-se para um banho de rio todo mundo junto, em
silencio e calma, para começar o dia que se anunciava nos primeiros raios de
sol da manhã, ultimo dia de estadia de muitos, inclusive nós, que já partíamos para
a próxima parada.
A morena, que segurava minha
mão enquanto dançávamos, me abraçou, me beijou, e, enquanto eu lacrimejava,
saiu andando, olhou pra trás e sorriu...